A Guerra na Ucrânia — “Eu estava lá: a NATO e as origens da crise ucraniana”.  Por Jack F. Matlock Jr., último embaixador dos EUA na URSS

Seleção e tradução de Francisco Tavares

10m de leitura

Eu estava lá: a NATO e as origens da crise ucraniana

 Por Jack F. Matlock Jr., último embaixador dos EUA na URSS

Publicado por  em 15 de Fevereiro de 2022 (original aqui)

 

Editorial credit: mark reinstein / Shutterstock.com

 

Após a queda da União Soviética, disse ao Senado que a expansão [da NATO] nos conduziria ao ponto em que nos encontramos hoje.

Hoje enfrentamos uma crise evitável entre os Estados Unidos e a Rússia que era previsível, voluntariamente precipitada, mas que pode ser facilmente resolvida pela aplicação do senso comum.

Mas como chegámos a este ponto?

Permitam-me, como alguém que participou nas negociações que puseram fim à Guerra Fria, que traga alguma história sobre a crise actual.

Todos os dias nos dizem que a guerra pode ser iminente na Ucrânia. Dizem-nos que as tropas russas estão a reunir-se nas fronteiras da Ucrânia e podem atacar a qualquer momento. Os cidadãos americanos estão a ser aconselhados a abandonar a Ucrânia e os dependentes do pessoal da Embaixada Americana estão a ser evacuados. Entretanto, o presidente ucraniano aconselhou contra o pânico e deixou claro que não considera iminente uma invasão russa. Vladimir Putin negou ter qualquer intenção de invadir a Ucrânia. A sua exigência é que o processo de adição de novos membros à OTAN cesse e que a Rússia tenha a garantia de que a Ucrânia e a Geórgia nunca serão membros.

O Presidente Biden recusou-se a dar essa garantia, mas deixou clara a sua vontade de continuar a discutir questões de estabilidade estratégica na Europa. Entretanto, o governo ucraniano deixou claro que não tem qualquer intenção de implementar o acordo alcançado em 2015 para a reunificação das províncias de Donbas na Ucrânia com um grande grau de autonomia local – um acordo com a Rússia, França, e Alemanha que os Estados Unidos subscreveram.

 

Esta crise era evitável ?

Em suma, sim. Em 1991, quando a União Soviética entrou em colapso, muitos observadores acreditavam erradamente que estavam a assistir ao fim da Guerra Fria quando esta tinha terminado pelo menos dois anos antes por negociação e era do interesse de todas as partes. O Presidente George H.W. Bush esperava que Gorbachev conseguisse manter a maioria das 12 repúblicas não bálticas numa federação voluntária.

Apesar da crença prevalecente tanto do poder estabelecido da política externa em Washington como da maioria do público russo, os Estados Unidos não apoiaram, muito menos provocaram a desagregação da União Soviética. Apoiámos a independência da Estónia, Letónia e Lituânia, e um dos últimos actos do parlamento soviético foi legalizar a sua pretensão à independência. E – apesar dos receios frequentemente expressos – Vladimir Putin nunca ameaçou reabsorver os países bálticos ou reivindicar qualquer dos seus territórios, embora tenha criticado alguns que negaram aos cidadãos de etnia russa os plenos direitos de cidadania, um princípio que a União Europeia se comprometeu a aplicar.

Uma vez que a grande exigência de Putin é uma garantia de que a NATO não agregará mais membros, e especificamente a Ucrânia ou a Geórgia, obviamente que não teria havido base para a presente crise se não tivesse havido uma expansão da aliança após o fim da Guerra Fria, ou se a expansão tivesse ocorrido em harmonia com a construção de uma estrutura de segurança na Europa que incluísse a Rússia.

 

Esta crise era previsível?

Absolutamente. A expansão da NATO foi o erro estratégico mais profundo cometido desde o fim da Guerra Fria. Em 1997, quando surgiu a questão de acrescentar mais membros à NATO, foi-me pedido que testemunhasse perante a Comissão de Relações Externas do Senado. Nas minhas observações introdutórias, fiz a seguinte declaração:

Considero errada a recomendação da administração de levar novos membros para a NATO nesta altura. Se for aprovada pelo Senado dos Estados Unidos, poderá ficar na história como o mais profundo erro estratégico cometido desde o fim da Guerra Fria. Longe de melhorar a segurança dos Estados Unidos, dos seus Aliados, e das nações que desejam entrar na Aliança, poderia muito bem encorajar uma cadeia de acontecimentos que poderia produzir a mais grave ameaça à segurança desta nação desde o colapso da União Soviética“. De facto, os nossos arsenais nucleares eram capazes de pôr fim à possibilidade de civilização na Terra.

Mas essa não foi a única razão que citei para incluir, em vez de excluir, a Rússia na segurança europeia. Como expliquei à Comissão: “O plano para aumentar a adesão à NATO não tem em conta a verdadeira situação internacional após o fim da Guerra Fria, e prossegue de acordo com uma lógica que só fazia sentido durante a Guerra Fria. A divisão da Europa terminou antes de se pensar em levar novos membros para a NATO. Ninguém está a ameaçar dividir novamente a Europa. É, portanto, absurdo afirmar, como alguns afirmaram, que é necessário levar novos membros para a NATO para evitar uma futura divisão da Europa; se a NATO deve ser o principal instrumento para unificar o continente, então logicamente a única forma de o fazer é alargando para incluir todos os países europeus. Mas esse não parece ser o objectivo da administração, e mesmo que o seja, a forma de o alcançar não é através da admissão de novos membros de forma fragmentada“.

A decisão de expandir a NATO de forma fragmentada foi uma inversão das políticas americanas que produziram o fim da Guerra Fria. O Presidente George H.W. Bush tinha proclamado um objectivo de uma “Europa inteira e livre”. Gorbachev tinha falado da “nossa casa comum europeia”, tinha acolhido representantes dos governos da Europa de Leste que expulsaram os seus governantes comunistas e tinha ordenado reduções radicais nas forças militares soviéticas, explicando que para que um país esteja seguro, tem de haver segurança para todos.

O Presidente Bush também garantiu a Gorbachev durante a sua reunião em Malta em Dezembro de 1989, que se os países da Europa Oriental fossem autorizados a escolher a sua orientação futura por processos democráticos, os Estados Unidos não “tirariam partido” desse processo. (Obviamente, trazer para a NATO países que estavam então no Pacto de Varsóvia seria “tirar partido”). No ano seguinte, Gorbachev recebeu a garantia, embora não num tratado formal, de que se uma Alemanha unificada fosse autorizada a permanecer na NATO, não haveria qualquer movimento da jurisdição da NATO para leste, “nem um centímetro”.

Estes comentários foram feitos a Gorbachev antes da dissolução da União Soviética. Uma vez que o fez, a Federação Russa tinha menos de metade da população da União Soviética e umas forças armadas desmoralizadas e em total desordem. Embora não houvesse razão para alargar a NATO depois de a União Soviética ter reconhecido e respeitado a independência dos países da Europa Oriental, havia ainda menos razões para temer a Federação Russa como uma ameaça.

 

Esta crise foi deliberadamente precipitada?

Lamentavelmente, as políticas seguidas pelos Presidentes George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump, e Joe Biden contribuíram todas para nos levar até este ponto.

A incorporação de países da Europa Oriental na NATO continuou durante a administração de George W. Bush, mas isso não foi a única coisa que estimulou a objecção russa. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos começaram a retirar-se dos tratados de controlo de armas que tinham moderado, durante algum tempo, uma irracional e perigosa corrida ao armamento e eram os acordos básicos para pôr fim à Guerra Fria. O mais significativo foi a decisão de se retirar do Tratado Anti-Mísseis Antibalísticos, que tinha sido o tratado fundamental para a série de acordos que travaram durante algum tempo a corrida ao armamento nuclear. Após o 11 de Setembro, Putin foi o primeiro líder estrangeiro a telefonar ao Presidente Bush e a oferecer apoio. Cumpriu a sua palavra ao facilitar o ataque ao regime talibã no Afeganistão. Ficou claro na altura que Putin aspirava a uma parceria de segurança com os Estados Unidos, uma vez que os terroristas jihadistas que tinham como alvo os Estados Unidos também tinham como alvo a Rússia. No entanto, Washington continuou o seu curso de ignorar os interesses russos (e também aliados) ao invadir o Iraque, um acto de agressão a que não só se opôs a Rússia, mas também a França e a Alemanha.

Embora o Presidente Obama tenha inicialmente prometido melhorar as relações através da sua política de “reinício”, a realidade era que o seu governo continuava a ignorar as mais sérias preocupações russas e redobrou os esforços americanos anteriores para separar as antigas repúblicas soviéticas da influência russa e, de facto, para encorajar a “mudança de regime” na própria Rússia. As acções americanas na Síria e na Ucrânia foram vistas pelo presidente russo, e pela maioria dos russos, como ataques indirectos contra eles.

E no que diz respeito à Ucrânia, a intrusão dos EUA na sua política interna foi profunda, apoiando activamente a revolução de 2014 e o derrube do governo ucraniano eleito em 2014.

As relações azedaram ainda mais profundamente durante o segundo mandato do Presidente Obama, após a anexação russa da Crimeia. Depois as coisas pioraram durante os quatro anos do mandato de Donald Trump. Acusado de ser um joguete russo, Trump aprovou todas as medidas anti-russas que surgiram, ao mesmo tempo que lisonjeava Putin como um grande líder.

 

Pode a crise ser resolvida através da aplicação do senso comum?

Sim, afinal, o que Putin está a exigir é eminentemente razoável. Não está a exigir a saída de nenhum membro da NATO e não está a ameaçar nenhum. Por qualquer norma de senso comum, é do interesse dos Estados Unidos promover a paz, não o conflito. Tentar separar a Ucrânia da influência russa – o objectivo declarado daqueles que agitavam as “revoluções coloridas” – era uma missão louca, e perigosa. Teremos esquecido tão cedo a lição da Crise dos Mísseis Cubanos?

Agora, dizer que aprovar as exigências de Putin é do interesse objectivo dos Estados Unidos não significa que seja fácil de fazer. Os líderes dos partidos democrata e republicano desenvolveram uma posição tão russófóbica que será necessária grande habilidade política para navegar em águas políticas tão traiçoeiras e alcançar um resultado racional.

O Presidente Biden deixou claro que os Estados Unidos não irão intervir com as suas próprias tropas se a Rússia invadir a Ucrânia. Então, porquê transferi-los para a Europa de Leste? Só para mostrar aos falcões no Congresso que ele se mantém firme?

Talvez as negociações subsequentes entre Washington e o Kremlin encontrem uma forma de acalmar as preocupações russas e desanuviar a crise. E talvez então o Congresso comece a lidar com os problemas crescentes que temos em casa, em vez de os agravar.

É o menos que se pode esperar.

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O autor: Jack F. Matlock Jr. [1929-] é um diplomata de carreira reformado que serviu como Embaixador dos EUA na União Soviética de 1987 a 1991. Antes disso, foi Director Sénior para os Assuntos Europeus e Soviéticos do pessoal do Conselho de Segurança Nacional do Presidente Reagan e foi Embaixador dos EUA na Checoslováquia de 1981-1983. Foi Professor Kennan no Institute for Advanced Study e escreveu numerosos artigos e três livros sobre as negociações que puseram fim à Guerra Fria, a desintegração da União Soviética, e a política externa dos EUA após o fim da Guerra Fria.

 

 

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